ADEUS
Quando Godard anuncia que seu próximo filme irá se chamar “adeus à linguagem”, longe de se alinhar a qualquer um dos polos da tríade esquerdismo-ceticismo-saudosismo reverencial – tampouco ao propósito de “fazer o tipo hermético”, como querem alguns críticos – ele demonstra que está atento )aberto a experimentar( às possibilidades da nossa época. E, ainda que “adeus à linguagem” não esteja em circulação para atestar, os indícios dessa sua inclinação podem ser desde já captados.
Se começarmos pelo fim, ou seja, por seu último Filme – Socialisme, 2010 – encontraremos alguns índices da atenção de Godard à época. A câmera-olho que em 1959 saía dos estúdios e, nas mãos, apreendia os movimentos orientados por um roteiro suficientemente aberto – tanto aos improvisos dos atores quanto às intervenções de um acaso exterior – reaparece em Film Socialisme, porém, agora transfigurada nas vulgares câmeras de celular. Tão ordinárias quanto a baixa resolução das imagens geradas por essas câmeras de bolso, são as situações registradas por seus usuários e que, em Film Socialisme, aparecem exatamente como são – ou seja, sem dissimulações. O registro do encontro entre os passageiros com o capitão ou a “balada” nas pistas do transatlântico, em VGA, dividem a timeline com imagens retiradas da internet – estáticas, fragmentos de vídeos do youtube e de canais de tv – além de trechos de clássicos do cinema num procedimento de linguagem amplamente utilizado por Godard desde os tempos “áureos” da década de 1960: a colagem. Enquanto nos anos sessenta o estranhamento e a surpresa ficavam por conta da mobilização dos signos verbi-voco-visuais que, dispostos simultaneamente numa mesma cena, relacionavam-se entre si gerando novas significações, em 2010 a ressignificação encontra-se mais na sequência entre as cenas, ou seja, na montagem.
Adeus à linguagem. Eis uma das frases mais desafiadoras que a nossa época traz à tona. Provocativa e prismática, basta se debruçar minimamente para perceber que os sentidos que dela se depreendem podem apontar, entre si, direções opostas ou convergentes e, frente a uma dada realidade, resultar em posturas reativas ou revolutivas. Tudo depende do caminho que se escolhe trilhar – da frequência a que se escolhe (des)afinar. Não à toa Godard a designou como título de seu filme novo. E, também não à toa, nós a redesignamos como adeusalinguagem. As combinações que tal (re)arranjo pode gerar nos ajudam a tecer um panorama das posições - e dos campos - em que jogam os (re)produtores de linguagem da nossa época.
Quando em 1918 Malevich apresenta as telas “negro sobre fundo branco” e “branco sobre branco” está tensionando, na estrutura, os limites da linguagem pictórica. Quando em 1921, por ocasião da exposição 5x5=25, Rodchenko apresenta a série “vermelho puro”, “amarelo puro” e “azul puro”, Tarabukin logo anuncia: “é o último quadro”. Mais do que o fim da pintura trata-se, essencialmente, da ruptura com a representação – traço comum aos movimentos de vanguarda do começo do século XX. A revolução de 1917 na Rússia, no entanto, ao mesmo tempo que abre novas perspectivas de atuação para os artistas torna também mais agudas as implicações políticas das especulações no campo da linguagem.
Enquanto a "criação não objetiva" avançava das telas para o espaço, o estado soviético se degenerava, com cada vez menos espaço tanto para a democracia direta dos sovietes quanto para a liberdade individual, independente de qualquer ordem. A burocracia stalinista, apoiada em discurso populista e no programa da “edificação da nova consciência proletária” declara “luta aberta contra a ‘arte especulativa dos produtivistas’” reabilitando a representação em nome da compreensão das massas. Esse adeus à linguagem, levado às últimas consequencias na URSS, significou a aniquilação física da vanguarda.
É curioso, e também desesperador, que, mesmo 80 anos depois e do amplo conhecimento das consequências estacionárias e mediocrizantes ocasionadas pela burocratização na URSS, esse tipo de discurso grosseiro – que contrapõe experimentação estrutural da linguagem a “luta de classes” –, travestido de revolucionário, encontre ecos ainda hoje. No Brasil a reação a especulação é muito grande – não é incomum encontrar quem, diante de um contexto de acirramento das contradições, responda com a proposta de “sair às ruas”, em geral “para atacar”, mas não para apontar caminhos de superação da realidade imediatamente colocada. Àqueles que, ao contrário, se dedicam ao exercício do experimental, de projetar saídas, acusam de “covardes”, “alienados” ou “blasés”.
No panorama atual, o coro da negação simples conta ainda com o reforço especial dos céticos que, ao lado dos esquerdofrênicos, entoam em uni-sono seu adeus à linguagem. No caso do ceticismo, contudo, há uma diferença de percurso. Se os esquerdofrênicos encontram na denuncia o alívio para a consciência e, assim, uma maneira confortável de sentarem-se, os céticos preferem tomar um atalho para o sofá e declarar logo a morte da especulação já que, segundo eles, tudo já foi inventado. De fato, assumir a invenção como pauta da própria vida é arriscar-se num campo desconhecido, sem garantias de “reconhecimento” ou “sucesso”. É como disse Helio Oiticica, “se eu soubesse o que serão essas coisas [que faço], elas não seriam mais invenção”.
Oiticica é um ótimo (anti)exemplo para tratarmos da terceira variante de adeusalinguagem: a deusa linguagem. Pois não só de negação simples vive (morre) o presente; há também a afirmação cega – que nada mais é do que o igual oposto, o outro lado da mesma moeda. Em 1972, irritado com o panorama raso do pensamento e da arte no Brasil, Helio postava o seguinte contra-irritante em experimentar o experimental: “de todos os ‘re’, não confundir reviver com retomar. A arte brasileira parece condenada ao eterno retorno, revival de terceira categoria. O experimental pode retomar, nunca reviver.” O que Oiticica chama de “revival”, em 1972, nós identificamos hoje como refluxo.
A DEUSA LINGUAGEM
ADEUS À LINGUAGEM
Sobretudo no Brasil, nos últimos anos, há, tanto no mainstream quanto no underground, uma tendência de trazer à cena referências da vanguarda do século XX. Na grande maioria das vezes o tratamento dado a essas referências é o da reverência e não o da retomada no sentido proposto (e exercitado) pela própria vanguarda: r/evolução de estruturas. Documentários retratando a ousadia de outrora inundam os cinemas; produções e discursos inflamados sobre a radicalidade dos gênios da raça habitam desde festas no apê até bares e baladas; reproduções formalistas de soluções espaciais modernas modelam, como estilo, os mais variados ambientes, dentro e fora das revistas de decoração. Tratam “sobre”, porém, raramente “são” ou processam o raciocínio estrutural vivo nas referências reverenciadas.
Tanto as posições esquerdofrênicas, quanto as céticas e as reverenciais olham para o presente pelo espelho retrovisor ao passo que caminham de costas em direção ao futuro. Esquecem-se de que ao lado das misérias, o presente lança também as bases para sua superação; esquecem-se que junto com a gravidade, o presente anda também grávido de possibilidades. Para enxergar e explorar essas possibilidades é preciso, porém, livrar-se de todo espírito maniqueísta – nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo: ver com olhos livres.
Em O Desprezo, pode-se ler a citação dos Lumière “il cinema é un’invenzione senza avvenire” embaixo da tela do cinema ao mesmo tempo em que ouve-se pelo menos três línguas diferentes faladas em sobreposição & que o diretor alemão Fritz Lang discute com o cineasta francês que quer filmar a Odisseia & que o produtor norte-americano conversa com sua secretária – é o filme todo em uma só cena. Já em Film Socialisme vemos a imagem de uma pessoa arrastando um corpo seguida de um trecho de Chaplin tocando violino seguido de um ícone medieval seguido de uma imagem de caça na tevê seguida de um jacaré que abocanha um pato seguido de um trecho do Encouraçado Potemkin... - ou seja, numa visada eisensteiniana, a terceiridade fica por conta da cabeça de quem vê. E o todas as cenas compiladas em pouco mais de 4 minutos compõem o trailer do filme no youtube.
Além da colagem, como procedimento estrutural (e estruturador) da linguagem, também o erro constitui uma contribuição milionária em Film Socialisme. As falhas nas imagens em alta resolução – intencionalmente mantidas ou não – trazem à tona a estrutura de composição da imagem na matriz digital: o pixel. Esses mesmos pixels – que, não fossem as falhas, ficariam escondidos atrás do ótimo acabamento da alta resolução – aparecem expostos também nas imagens em baixa das
câmeras de celular, tornando claro que se trata da mesma matriz. O que pode parecer uma bobagem – tornar a estrutura aparente e, portanto, mobilizável numa direção não convencional – é exatamente um dos pontos fundamentais que torna relevante a (pro)posição de Godard hoje (2012). Pois, na medida em que “com celulares e tudo mais, todo mundo é um ‘autor’ agora”, é na perspectiva do uso que reposiciona (e disputa) os usos mais convencionais que se faz desses meios em larga escala, que pode residir a chance da novidade.
Para desgraça dos autores de todo o mundo – agarrados a categorias estanques – o ‘fim do autor’ processado por Godard em tela, é também posição política defendida fora delas. Radicalmente contra as leis de direitos autorias – que limitam a utilização das produções por outros produtores – Godard disponibilizava Film Socialisme para download na rede mundial ao mesmo tempo em que lançava o filme no festival de Cannes em 2010. E, enquanto no Brasil com ‘ésse’ Caetano Veloso declarava "ninguém toca em nem 1 centavo dos meus direitos autorais”, Godard doava 1.000 euros para a campanha de cobertura das despesas legais de James Climent – processado por violar a lei dos direitos autorias musicais na França. Junto com a doação, Climent recebeu um bilhete com a imagem de uma maquete de veleiro e a frase “Surcouf, Jean-Luc Godard”.
Mais tarde, sobre a lei francesa que regulamenta a distribuição e promoção dos trabalhos criativos na internet, JLG diria: “Sou contra a HADOPI, evidentemente. Não existe mais propriedade intelectual”. Quando mecanismos de busca e compartilhamento facilitam não só o acesso às obras – do repertório cinematográfico, pictórico, musical (...) da cultura mundial – como também às ferramentas de edição e produção de linguagem, para uma quantidade cada vez maior de pessoas, intensifica-se o processo de demolição tanto da ideia de autor (figura exclusiva) quanto do cinema e de outras formas de linguagem tal como as conhecíamos até então.
Ao ser questionado sobre a ideia de fim do cinema, militada mais recentemente, mas com presença marcante, sobretudo em “Histoire(s) du Cinéma", JLG esclarece que se trata do "fim de um certo cinema, de uma certa ideia de cinema que teve seu impulso em meados do século XIX e que começou a desaparecer no limite de 120 anos, substituída por técnicas mais novas, outras máquinas e outras culturas, que não são mais ligadas a representação e à arte que vinham da Grécia e de Homero. Nós perdemos essa arte como ideia de vida e de criação para passar a uma outra ideia. Uma mudança muito mais rápida e definitiva do que a do fim da perspectiva”.
No mundo mais e mais retribalizado em que vivemos “a cultura eletrônica da aldeia global coloca-nos frente a frente com uma situação na qual sociedades inteiras se entrecomunicam por uma espécie de ‘gesticulação macroscópica’ que não é, em absoluto, linguagem no sentido corrente”. Sobre o argumento de “Adeus à Linguagem”, Godard nos antecipa: “é sobre um homem e sua mulher que não falam mais a mesma língua. O cachorro que, eles levam para passear, então intervém e fala”. De fato, se por um lado a rede mundial estimula e provê mecanismos para a produção de linguagem, por outro, ela produz uma língua própria e que permite a comunicação independente de todas as diferenças de origem. É mais do que possível – é provável – que Godard, do alto da sua ironia provocativa, em uma só tacada acerte esses dois campos – língua|linguagem – que, não à toa, estão intimamente ligados nesse começo de século XXI. E, pra concluir, acrescenta: “talvez eu, inclusive, grave meu próximo filme em 3-D. Eu sempre gosto quando novas técnicas são introduzidas. Porque elas ainda não têm nenhuma regra. E se pode fazer o que quiser”.
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